3.3.80

"Ano 380, primavera, terceiro dia em Alexandria.

Este pergaminho pertence a Heséquio, filho de Eudoxo, o fabricante de cera.

Hoje foi o dia da minha primeira aula com o Mestre. Em ocasião próxima ainda descreverei o jantar de ontem, não o faço agora porque aconteceu nele tanta coisa contável que ainda não sou capaz de contar.

Pulo para a aula, que o mestre começou dizendo:


"Quando revisitamos, nos livros 8 e 9, os três elementos que o livro 4 nos apresenta, eles ganham outra dimensão. No livro 4 eles pareciam faculdades, agora eles parecem mais impulsos. O elemento desejoso é especificado como o impulso para a satisfação material; o thumoidés como o impulso para ganhar e acumular algo; logistikon como o impulso de descobrir a verdade. Eles não perderam suas funções características, mas estes encontraram um novo contexto; e a maior mudança é no elemento logistikon.

Antes, tinha ficado pouco claro se este elemento tinha um objetivo próprio ou se era meramente um supervisor que dispunha os limites nos interesses dos outros elementos para o interesse do todo. Agora ele tem um objeto de desejo próprio, e que não é o bem, mas sim episteme. Episteme é um bem, claro, talvez o maior bem. Mas este elemento procura episteme porque é episteme, e não por ser um bem. Ele se transformou, afinal, no elemento filosófico da alma.

Por esta razão não é suficiente pro logistikon apenas supervisionar, não se queremos ser felizes. Sua paixão natural é dirigida como algo diferente e melhor do que isto. Certamente, é melhor que este elemento em cada pessoa deva ser supervisor do que cair sob o controle de outros elementos da alma e reduzido a uma ferramenta de serviço, como nos dizem os livros 8 e 9. Mas, embora seja apropriado que ele supervisione os outros (olhem aí a página 441, coluna e), não é o que ele ama fazer. 

Como o elemento filosófico, ele toma a responsabilidade de supervisionar com a mesma reserva que os filósofos tomam a de supervisionar a cidade. Mesmo na alma, governar é trabalho. (filosofia, por contraste, embora extenuante, é o melhor e mais sério jogo.) Quando Platão se dá a licença do mito, ele toca neste ponto assim: o elemento filosófico é divino e imortal, os outros elementos são mortais e animais, e só a necessidade de reencarnação coloca-os juntos.

O elemento filosófico da alma, então, não é completamente descrito no livro 4. Isto é surpreendente a primeira vista, pois as páginas do livro 4 nas quais os três elementos da alma são distintos contêm um dos argumentos mais cuidados da Politeia. É inquietante, talvez, pensar que Sócrates faça um aviso no prefácio deste argumento dizendo que não se pode esperar um resultado completamente satisfatório dele (olhem a página 435 coluna d). Mas a Politéia nunca, de fato, chega ao caminho mais longo para resolver estes assuntos que Sócrates declara pouco explorados no livro 4.

É que, embora seja um caminho que Sócrates insista que os rei-filósofos devam ser levados a percorrer (vejam as colunas de a-d da página 504 em casa), ele mesmo recusa-se de percorrê-lo (vejam 506b-e, 533a); e nenhuma análise subsequente da alma dividida na Politeia tem o rigor técnico e aparente deste do livro 4."

O mestre tinha semblante descontraído, mas seu tom de voz parecia completamente tomado pelo que dizia. Mas, porque um suspiro de quem recobra o fôlego deixou espaço de silêncio, um dos alunos imediatamente perguntou "é tão rigoroso assim?"

Ao que o mestre foi enfático: "Claro!

"É que, para distinguir elementos na alma, Sócrates apela no livro 4 para casos onde a pessoa experiencia conflito interno quanto a alguma ação. Há o caso do homem com sede que se controla para não acabar com a sua sede; o caso de Leôntio, que está bravo consigo mesmo por ter espiado os cadáveres dos criminosos executados; e o caso de Odisseu, acalmando o coração quando este pede vingança imediata dos pretendentes. Se uma e única pessoa mantém atitudes conflituosas com relação ao mesmo resultado, Sócrates argumenta, isto não pode ser a respeito de um e único elemento da alma.

É um tipo particular de conflito em que o argumento do livro 4 coloca o olho: não o dilema vindo da mera coincidência de desejos que não podem ser simultaneamente satisfeitos, como quando um convite que eu gostaria de aceitar e o festival em honra a uma deusa que eu gostaria de ver caem na mesma noite, mas sim o ensejo de gratificar um desejo e, simultaneamente, resistir a este ensejo; não duas inclinações que afinal são incompatíveis, mas uma inclinação a alguma ação e restrição a esta mesma ação. 

Se o princípio geral no qual Sócrates baseia a sua divisão da alma é antes expressa em linguagem que parece também tão adequada como aplicação lógica quanto psicológica, ele é, de fato, desenvolvido em termos de opostos, mas não contraditórios: em termos de assentimento e dissentimento, desejo e rejeição, empurrar e puxar, no lugar de assentimento e não-assentimento, desejo e não-desejo, puxar e não-puxar. Vejam depois na página 437, colunas b e c. "

Então o mestre encorpou a voz e finalizou: "Não é meramente através das diferenças, mas pelos conflitos, então, que as partes da alma são descobertas."

Embora tivesse tom de voz vigoroso, o mestre respirava cada vez mais fundo ao longo do seu discurso, e porque com esta última frase, ele mesmo pareceu impressionado, como se nunca tivesse posto o assunto nestes termos, o mestre ganhou um ar introspecto e esqueceu da turma.

Eu, que estava quase tão fascinado pelo argumento de Platão sobre uma alma fatiada quanto com a figura do mestre, fiquei quieto. Os demais alunos, estes porque já conheciam o mestre, saíram da sala e foram ao jardim, pois já sabiam que o intervalo iria durar.

Ah, já quase não tenho querosene. Isto é sinal de que devo dormir.  Amanhã conto aquilo que a memória escolher, tanto da aula de hoje quanto da de amanhã".