2.3.80

"ano 380, primavera, segundo dia em Alexandria.

Este pergaminho pertence a Heséquio, filho de Eudóxo, o fabricante de cera.

Hoje adotei os princípios da disciplina física do mestre. Estou convencido de que é preciso ter o corpo tão são quanto a mente.

Acordei, fui assistir a aurora, me exercitei e voltei à casa para fazer o desjejum. Banhei o corpo e me coloquei no jardim, onde procurei rever os passos da argumentação de Platão sobre a semelhança entre alma e cidade. Meu coração estava intranquilo, ainda assim: depois de tanto esperar, estava, enfim, em Alexandria!

Um pensamento me ocorreu: será que o mestre era semelhante à grande Alexandria?

Era preciso conhecer um, depois o outro. Como não encontrei o mestre, fui, então, à praça da cidade. Notei que muitos mercadores têm crucifixos pendurados nos pulsos. Acho que é o símbolo de que o meu irmão falou-me que usam os povos cristãos. Mas não perguntei nada a ninguém. 

O mestre disse que poderia conversar comigo à tarde, na Academia. Mas resolvi ir conhecê-la ainda pela manhã. É um prédio grande e bonito. Mas é a biblioteca que parece mesmo um templo. É impressionante já pelo trabalho dos copistas, mas ainda ganha ar quase inacreditável quando vemos como é grande a sua estrutura. Tão grande, aliás, que, ao ouvir uma voz baixinha vinda de qualquer parte, não soube dizer de onde mesmo é que ela vinha, pois ecoava a partir da abóbada para todas as paredes. 

Isto me testemunhava tanto o tamanho da biblioteca, quanto os detalhes da arquitetura do prédio. Mas intrigou outro "tanto", este como que "tamanhamente": me intrigou tanto que passei um bom triângulo de tempo procurando o dono da voz. Encontrei, finalmente, mais alguém além de mim, de longe: era uma mulher, na verdade uma menina, acho que da minha idade. Não sabia que crianças tinham o acesso à biblioteca.

Mais tarde encontrei com o mestre. Contei-lhe que precisava ainda regrar o meu espírito, pois não conseguia conter a minha euforia com a chegada em cidade tão diferente da minha. Ele, que tinha semblante muito tranquilo, disse:

"let us remind ourselves what is the principle of conflict:
it is a set of opposition to each other: an inclination toward some 
action and a pulling back from that same action."

Perguntei se ele estava me preparando para a aula sobre a tripartição da alma, ao que ele me respondeu com sobrancelhas sapecas que diziam já-que-você-insiste... mas falando também com voz descontraída enquanto séria que a vida toda ele passava preparando a si mesmo para entender a ordem dessas benditas três partes, ou quantas partes é que sejam, e disse ainda:


'É que uma figura completa da alma humana aparece só devagarzinho. No livro IV da Politeia, se é para lá que vamos, começamos por uma distinção das classes da cidade a partir das virtudes cardinais, isto é o que deve advir de termos posto como pressuposto que a cidade para a qual olhamos é boa.'


Aproveitei o ensejo para perguntar logo o que já era dúvida antiga: 

"se as partes da cidade vêm da investigação das virtudes cardinais, por que nenhuma delas tem qualquer relação com o epitimetikon? ou então: qual é a relação (ou não-relação) entre virtude e desejo?"

O mestre ouviu, neste momento, a mesma voz que eu ouvira mais cedo na biblioteca. Ele me contou que se tratava da sua filha, chamando-o para jantar e, vendo o meu ar de surpresa, emendou: "ela voltou hoje de manhã da cidade da mãe, eu ainda não a apresentei a você?", e disse que retomaríamos a conversa depois de comermos, pois não adiantava falar logistikonisticamente sobre o epitimetikon enquanto exercitávamos aquilo que ele nos oferecia de tão bom grado para a saúde do corpo: o apetite pela comida comburente.

Fiquei maravilhado pelas palavras do mestre, pois, neste momento, percebi que estava mesmo com fome. E fomos ter com Hipátia, sua filha."